Revelações de Jonas: Segunda Etapa da Viagem

Segunda Etapa da Viagem
A Folha de Parreira

Depois de muito esforço Jonas finalmente conseguiu chegar novamente a borda do desfiladeiro. Deixava para trás o rio cinzento de muitos braços e carregava consigo uma grande questão, se esse era um sonho ou algo mais. Jonas tornou a tatear o chão, buscando alteração no que percebia, para comprovar se era ou não um sonho, porém nada encontrou de diferente. Procurou a seguir por pontos de referência de quanto recém despertara. Se acaso tivessem mudado de lugar ou desaparecido, com certeza se tratava de apenas um sonho, ruim, mas ainda assim um sonho. Nada mudara, estava tudo igual. Ou esse era um sonho muito mais complexo que todos que tivera ou algo muito estranho estava acontecendo.

Foi então que percebeu que estava completamente só. Calculava que já tinham se passado pelo menos uma hora desde que acordara e ainda assim não tinha visto nenhuma pessoa, nenhum pássaro no céu ou mesmo tinha sentido uma brisa sequer, mas também não fazia calor. Simplesmente sentia nada, o lugar parecia completamente morto. O único som que escutava vinha da tentação do rio cinzento, do qual queria distância. Nunca tinha se dado conta do quanto à solidão era ruim até aquele momento, mesmo enfermo naquela cama de hospital Jonas ainda sentia a presença humana ou mesmo a presença irritante dos ratos que dividiam o espaço dos pacientes do Souza Aguiar. Naquele momento até mesmo a presença dos médicos que lhe faziam tanto mal seria bem vinda para o adolescente.

Jonas respirou fundo e seguiu seu caminho. Pensou em se guiar pela luz do sol, mas ao olhar para o céu viu apenas densas e pesadas nuvens em uma tonalidade também vermelha, mas muito próxima do negro. Amaldiçoou-se por não ter reparado nesse detalhe antes. Viu no horizonte uma montanha maior que as demais, parecendo até mesmo estar além do cânion. Tomou–a como direção a seguir e começou a caminhar. Jonas andou por horas nesse rumo fixo, sempre em linha reta até finalmente conseguir sair do cânion vermelho. Mas a montanha continuava distante e de agora em diante entre eles havia um deserto aparentemente sem fim, e completamente vermelho. Mas um vermelho mais escuro, mais enegrecido pelo tempo.


Vermelho... O tom predominante...


Completamente exausto da caminhada, Jonas sentou no chão e preparou–se para a grande caminhada que faria. Teve a estranha impressão de que algo estava errado. Olhou para trás e viu o caminho que percorrera, mas ainda assim não era o que lhe causava a sensação. Tornou a olhar em torno de si até que finalmente percebeu que o tempo não havia passado, pelo menos não no seu conceito de dia e noite. Apesar de caminhar por horas no desfiladeiro não havia acontecido nenhuma alteração no que dizia respeito à luminosidade do local. Tudo continuava sempre da mesma forma, a única alteração que existia no seu ponto de vista eram suas pegadas marcando o caminho de onde viera e mais nada.

Jonas se levantou, respirou fundo e recomeçou seu caminho. Ele precisava se focar em alguma coisa para não enlouquecer, a solidão estava começando a fazê–lo ver coisas. Pensava nisso porque alguns minutos antes de chegar ao deserto, podia jurar ter visto ao longe a figura de um cavaleiro negro montado em um corcel negro exatamente na divisória entre o cânion e o deserto. Era impossível que em pleno século vinte e um Jonas ainda avistasse cavaleiros, e realmente parecia ter sido, dado que o cavaleiro desapareceu sem deixar rastros quando Jonas coçou os olhos pra forçar a lucidez.

Com o passar das horas caminhando, Jonas começou finalmente a sentir algo que tinha esquecido como era, sentiu sede. Por um segundo lamentou estar longe do rio cinzento, mas uma tapa na testa o fez deixar de lado essa maldita vontade. Caminhou até o topo da duna mais alta que conseguia distinguir e tentou procurar por algum oásis. Durante a procura viu que estava finalmente próximo de seu objetivo, a montanha, pelo menos era o que lhe parecia. Por mais que esforçasse a visão Jonas não viu sequer a ilusão de um oásis, e apenas sentia sua sede aumentar. Já tinha ouvido histórias, principalmente em quadrinhos, de pessoas que sobreviviam no deserto se alimentando de cactos. "Ótimo, posso comer cactos... Mas onde encontro um?", indagou Jonas, sem localizar nenhum no vazio do deserto. 



No topo... No alto...


Sem nenhuma esperança de encontra água, ou mesmo que fosse começar a chover, Jonas começou a descer lentamente a duna rumo à montanha. Se algo tinha que acontecer de bom, esperava que acontecesse naquele momento. Foi quando escutou o bater de asas sobre sua cabeça. Jonas olhou para o alto procurando pela fonte do som, mas nada encontrou. O que quer que esteja por ali, provavelmente estaria além das nuvens, ou oculto por elas. Sentiu medo e correu muito.

Não foi uma decisão sábia. Imerso em seu pavor pelo som que não cessava Jonas acabou se desequilibrando e rolou pela duna até chegar a sua base. Ainda assim, com muita dor e parecendo um bife empanado, Jonas se levantou e tornou a correr. E correu muito, mesmo sentindo o esforço de se locomover na areia desse deserto. Sem olhar para trás nem pôde perceber quando algo saiu das nuvens e deu um rasante em sua direção, e no final não conseguiu escapar de fortes mãos que agarraram seus ombros e levaram Jonas para o alto. Completamente apavorado, Jonas simplesmente desmaiou.

A consciência de Jonas tardou a voltar, mas quando voltou Jonas tentou fazer isso de modo que quem quer que o tenha pegado não percebesse. Escutava novamente o som de rio próximo, e com o canto do olho conseguiu ver que estava novamente no mesmo desfiladeiro de onde saíra. Tornou a passear pela área com seus olhos e viu dos pés descalços próximos a ele, e uma profunda sensação de paz percorreu todo seu corpo. Ergueu a cabeça confiante, procurando pelo dono dos pés e tamanho foi seu espanto que se levantou rápido. Era um anjo.

O anjo vestia um manto azul celeste brilhante e portava um cinturão dourado onde nele estava presa uma enorme espada cuja bainha arrastava no chão. Tinha dois pares de asas nas costas, sendo um par maior que o outro, dando alguma semelhança com o formato das asas de borboletas. Seu semblante parecia castigado por batalhas e no olho esquerdo tinha a cicatriz de algum corte, mas o olhar permanecia o mesmo, tranquilo e sereno. Seu cabelo era negro e comprido, mas completamente liso. Sua mão direita carregava um belo arco composto, ricamente detalhado e aparentemente feito de ouro mesclado a alguma madeira. A mochila de flechas provavelmente estaria nas costas do anjo, logo atrás das asas, como indicavam duas tiras douradas nos ombros do anjo. Imediatamente Jonas se deu conta de estar completamente nu e sem nenhuma vestimenta apropriada, tratou de esconder sua genitália com as mãos. Imediatamente o anjo o interpelou:

– Não há necessidade de folha de parreira nesses domínios, Jonas. – Disse o Anjo.

– Como? Como sabe o meu nome? – Perguntou Jonas, obedecendo ao anjo com receio e se enchendo de dúvidas.

– Não há nada que Ele não saiba, e como parte Dele... Apenas sei que sei.

– Se sabe tanto, onde eu estou? – Perguntou o jovem.

– Onde julgas estar?

– No inferno! Isso aqui não tem nada, apenas essa terra vermelha e aquele maldito rio que parece que quer me tragar pra suas profundezas! Eu sei que você é alucinação causada pela solidão...

– Se assim o diz, assim o é...

– Em? Está querendo insinuar que isso só é assim porque eu acredito que seja assim?

– Talvez sim, talvez não... Tudo é complexo demais para ser resumido numa simples cor ou mesmo em um rio, e ao mesmo tempo é mais simples do que supõe.

– Aonde quer chegar com essa filosofia? Eu não entendo...

– Lugar nenhum, apenas sempre quis dizer isso...

– Hã? Você disse isso tudo "apenas" porque sempre quis dizer?

– Onde está escrito na Bíblia que somos desprovidos de humor?

– ...

– Imaginava essa reação, vocês quando chegam sempre reagem dessa forma...

– E então, onde estou?

– Bem, apesar de toda essa desolação, este aqui é, ou melhor, deveria ser o seu lar. Já leu ou ouviu falar de Chico Xavier?

– Já, minha avó estava lendo coisa dele algum tempo atrás, quando meu avô morreu...

– Bem, em alguns dos livros dele ele descreve com certa perfeição, auxiliado claro, como é o mundo dos mortos.

– Então estou morto?

– Ainda não... Diria que em um profundo coma... Continuando, decerto sabe algo sobre colônias para onde os espíritos vão quando desencarnam e tudo o mais. Bem, essa aqui é a sua colônia, para onde deverá ir quando morrer. Ou melhor, deveria, já que pelo que podemos ver ela não está exatamente do jeito que você esperava. Lembra que nos livros de Xavier diziam que as colônias tinham suas proteções contra invasões de outros seres? Pois bem, se olhar em volta vai ver o que acontece quando tudo dá errado. Ah sim, já olhou bastante.

“Deve estar se perguntando como tudo isso aconteceu? Bem, faz alguns anos que isso aconteceu e de certa forma tenho que admitir que foi um erro puramente nosso. Quando digo nosso, me refiro a nós, o que chama de "anjos". Por muitos anos nossos narizes estiveram mais erguidos que até mesmo a divindade e quando isso acontece, quando cremos sermos perfeitos, é quando cometemos os maiores erros. E esse ano cometemos o pior de todos. Enviamos para seu mundo diversos espíritos que tinham uma profunda responsabilidade sobre o que viria a acontecer na Terra, e que ainda há de acontecer. Demos a eles treinamento e um sentido para viver, deixamos eles informados de tudo a nosso respeito, demos a eles as memórias necessárias e a esse grupo foram acrescentados alguns de nossos melhores Arcanjos, e para resumir, enviamos com eles a Voz e a Justiça.”

“Mas fomos soberbos e subestimamos nossos inimigos. Acreditávamos tanto em nossa superioridade que não percebemos que nossos irmãos tinham sido enviados para a derrota total. Erramos em julgar que poderíamos realmente fazer diferente do que está escrito no apocalipse de João. Tentamos fazer antes o que tem momento certo de acontecer, e nossos irmãos pagaram o preço. E nós também.”

“Certos da vitória, deixamos que o Primogênito de Mahl, conhecido como o 'Devorador de Almas' encarnasse. Ele surgiu de uma parte de todo o mal que existe, sua cria direta, mas há eras havia abandonado a causa de seu criador e se tornado uma das forças do bem maior, adotando Deus em seu coração. Porém subestimamos o planeta Terra e as regras da encarnação. E encarnado o filho de Mahl era presa fácil para que outros encarnados, associados a espíritos malignos, instigassem-no até despertar novamente seu mal. Quando isso aconteceu o Filho de Mahl voltou seu ódio contra todos nós.” 


O Mal Em Tudo Que Existe.


“Essa colônia estava em seu caminho. O filho de Mahl, mesmo preso a Terra, conseguiu manifestar tamanha força que sozinho destruiu todo esse mundo, deixando dele apenas as cinzas dos espíritos que aqui residiam. O rio cinzento que viu é formado pelos restos das energias provenientes do desespero dos espíritos ao serem devorados. E sempre que alguém se aproxima de seu leito os vestígios tentam desesperadamente buscar ajuda e acabam com isso destruindo todos que tocam. Teve sorte, ou habilidade, para escapar do Rio. Agora estamos tentando descobrir o que fazer para contê–lo e não temos nenhuma ideia de como e nem quando faremos. Até lá a esperança será substituída pelo desespero. E pela culpa de nosso erro.”

– E porque está me contando tudo isso? – Perguntou Jonas.

– Nunca teve desejo de desabafar um pouco? No fundo, somos todos iguais... Precisava disso, e sei que é seguro contar tudo a você.

– Porque é seguro?

– Quem, no mundo onde você vive, vai tomar como verdadeiras as palavras de um jovem que despertou de um coma profundo depois de dois anos sendo sedado pelos médicos? Considerarão como devaneios resultantes do coma e das inúmeras vezes que escutava pessoas rezando pelas almas de seus entes queridos nas camas daquele hospital.

– Mas tem sempre alguém que acredita...

– Mas a maioria das pessoas da Terra é incrédula. Até mesmo você não está acreditando no que digo, eu sinto isso, e apenas deve julgar ser resultado dos sedativos nesse exato instante... O que não deixa de ser verdade... Mesmo que eu lhe diga isso com todas as letras, que isso que lhe passo é real, você e as demais pessoas têm uma visão muito romantizada do além para crerem que as coisas estão indo mal.

– Você fala como se a culpa fosse nossa...

– E é. Se existe alguma culpa pelo despertar do Devorador de Almas essa culpa é também da humanidade. Vocês deixaram o mundo ficar do jeito que está. Nós, anjos, apesar de nossa soberba, não tivemos nenhuma participação nisso desde o Pacto das Águas. Entenda, Deus não interfere na Terra desde que deu a vocês o livre arbítrio. Nós apenas tentamos proteger vocês de ameaças externas, mas de vocês mesmos nunca mais os protegemos, exceto quando vêem a nós com suas súplicas. Quando enviamos o Devorador das Almas e seus guardiões para a Terra não esperávamos que a mesma tática que destruiu Adão fosse usada novamente por vocês.

– Como assim? O que Adão tem a ver com isso?

– O Devorador das Almas foi enganado por uma mulher em sua busca, mulher essa que aceitou fazer o que fez em troca de uma enorme recompensa. Ela fez o que fez sem ter noção das consequências e quando essas apareceram, ela pegou sua recompensa e partiu sem olhar para trás. Deixando ele sozinho.

– E agora? Onde ele está?

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